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segunda-feira, 6 de julho de 2009

A Cura da Loucura ou A Loucura da Cura - Daniel Augusto Fernandes

daftm1@gmail.com

“A única diferença entre um louco e eu,é que eu não sou louco.”Salvador Dali
Nos últimos dez anos, o problema da instituição psiquiátrica tem sido discutido por diversos setores da sociedade brasileira. Tendo se iniciado com um posicionamento dos trabalhadores de saúde mental, em 1987 nasce o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, se posicionando no sentido de negar o manicômio como forma de tratamento e de propor novas alternativas terapêuticas ao indivíduo portador de transtornos psíquicos. A partir de então, tem participado de iniciativas políticas de elaboração e discussão de Projetos Legislativos e, em âmbito executivo, de ações governamentais em tentativas de se criar políticas de saúde mental que prestem ao portador de transtornos psíquicos o respeito e cidadania que merecem. Além disso, temos recebido a publicação de livros discutindo aspectos jurídicos e técnicos da loucura recolocando questões como a da imputabilidade e das internações involuntárias em manicômios judiciários,
“uma instituição dividida entre a saúde e a justiça, entre o tratamento e a penitência – dicotomia radical responsável por discussões que ultrapassam as questões acerca dos direitos e deveres do Estado ou de cada sujeito. São questões que envolvem a vontade, o desejo, as possibilidades e os limites do sujeito.” (Battaglia, 1999, p. 18)
Por outro lado, percebemos que a população em geral ainda não conhece os termos tão bem discutidos a nível técnico. Ainda é difícil para pessoas que não vivem com a loucura dentro do círculo familiar aceitar idéias como a do fim do manicômio. A instituição da sociedade que poderia e deveria funcionar como meio de comunicação tem passado informações, no mínimo, equivocadas em relação ao tema. Se no início do movimento antimanicomial a imprensa teve um papel fundamental ao veicular histórias e imagens da barbárie que acontecia dentro dos muros do hospício, hoje tem contribuído para uma grande confusão de conceitos fora destes muros. Temos assistido paulatinamente a matérias que apresentam psicopatas como o ‘Maníaco do Parque’ e o ‘Estudante do Cinema’ como doentes mentais que apenas “fomentam a desinformação e reforçam preconceitos que atingem milhões de portadores das mais diversas doenças mentais de natureza não agressiva e anti-social” (Barros, 1999).
É na tentativa de ser uma contribuição a discussão antimanicomial e de, ao mesmo tempo, chamar a academia a assumir sua posição de formadora de opinião, que apresentamos esse trabalho. Pretendemos mostrar como a história do movimento esteve ligada e tem suas semelhanças com a história da psicanálise e a ajuda que a psicanálise presta a formação de significado da experiência do louco. Mas, antes disso, voltemos a quem é, na atualidade, base teórica para toda discussão acadêmica sobre loucura.
Michel Foucault (1926-1984), em seu História da Loucura na Idade Clássica (1972) nos mostra como a loucura substituiu a lepra como principal objeto de exclusão e supressão de elementos desta sociedade. Precisava-se de outro fenômeno que seria seu novo ‘bode expiatório’.
“Esse fenômeno é a loucura. Mas será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que no entanto lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada obstinadamente, a todas as experiência maiores da Renascença.” (Foucault, 1972, p. 8)
Foucault, então, passa a descrever notoriamente um objeto do universo imaginário do homem renascentista, a Nau dos Loucos. Toda a realidade e simbolismo da Nau dos Loucos é apontada para o caráter desconfortante e sempre presente do louco na Renascença. Mas não é esse o enfoque que queremos dar ao simbolismo renascentista.
Foucault cita um quadro de Hieronymus Bosch
[1][1] baseado nesta concepção da Nau dos Loucos e outro quadro chamado A Cura da Loucura (1475-1480). O subtítulo do segundo, Extração da Pedra da Loucura, faz referência a um
“recurso ‘terapêutico’ razoavelmente comum na Idade Média. Entretanto, Bosch pintou uma flor como o objeto que está sendo removido. A flor é uma tulipa que, nos Países Baixos é uma metáfora para ser louco. É comum para alguém em estado de loucura ser chamado de ‘cabeça de tulipa’.” (Web Gallery of Art, 1996)
Gostaríamos de usar essa imagem para ilustrar nossa discussão da loucura como não sendo uma doença e da tese que a busca pela ‘cura’ da loucura nos afasta de outro aspecto: que a loucura já contém em si a própria cura.
‘Formas de tratamento’ como a do quadro não foram específicas de seu tempo como sabemos por diversas descrições do interior dos manicômios. Hoje, não se tenta ‘tirar pedras da loucura’, mas pode-se dizer que ‘joga-se pedras’ na cabeça dos loucos com os tratamentos a base de neurolépticos (sedativos do Sistema Nervoso Central), eletrochoques (verdadeiros ‘curtos-circuitos’ cerebrais), insulinoterapia (deixa o paciente em coma) e ‘em último recurso’ a lobotomia, como se a morte, destino da maioria dos internos, não fosse o último recurso’. Já passamos por várias tentativas de se reformar a instituição psiquiátrica e continuamos a buscar as causas das tais doenças mentais. Tem-se usado o fato de medicamentos tornarem a vida dos ‘doentes’ mais tolerável como argumento de que existe uma causa orgânica para todos os males mentais e que é apenas uma questão de tempo para se chegar a tais causas. Mas, tais medicamentos apenas atuam sobre efeitos do efeito e na maioria dos casos apenas aliena mais ainda a personalidade do indivíduo quando não a nega totalmente, no caso da ‘terapêutica’ do manicômio.
Mas, nem sempre foi assim. No mundo antigo e ainda na Idade Média “o louco era alvo de certo temor, de um terror sagrado. [...] Até ao Século da Razão, a loucura encontrava-se mais ou menos associada à vida pública ou, em rompimento com esta, associada a uma ordem sagrada” (Bosseur, 1976 [1974], p. 26). Sabemos por Foucault, como já havíamos dito, que essa perspectiva se altera no séc. XVII quando são criadas as primeiras instituições asilares onde os párias da sociedade, incluindo-se ali os loucos, eram presos. Com a Revolução Francesa (e todo o seu contexto político), aparece Philippe Pinel e seu ‘tratamento moral sem correntes’, mas ainda cerrados dentro dos muros do manicômio.
Apenas no século XIX surge a psiquiatria.
“Kraepelin [1856-1926] vai apresentar [1893-1899] ... minuciosas descrições clínicas de jovens esquizofrênicos (o termo ‘esquizofrenia’, aliás, só será proposto mais tarde, por Bleuler, em 1911) [...]: perturbações da associação de idéias (dissociação, discordância), da afetividade (desestima, indiferença) e dos contatos com o mundo exterior (recusa de contato, autismo). [...] A psiquiatria clássica ainda se refere a essas noções.” (Bosseur, 1976 [1974], p. 27)
Com o surgimento da psicanálise, muito do que era considerado ininteligível ou simplesmente ignorado pela ciência médica da época foi levado a sério por Freud. Ele tentava compreender o significado dos sintomas histéricos, de fobias e neuroses. “Uma série de fenômenos de nossa vida psíquica adquiria sentido: os atos falhos, os esquecimentos, os sonhos. O inconsciente impunha-se como um outro componente do nosso psiquismo – tal como a dinâmica libidinal” (Bosseur, 1976 [1974], p. 94).
É aqui que podemos apontar para algumas semelhanças da história da psicanálise com as origens do Movimento Antimanicomial. Este movimento está intimamente ligado com o trabalho de Franco Basaglia na Itália e este se identifica com todo um ‘discurso antiinstitucional, antipsiquiátrico (isto é, antiespecialístico)’ (Basaglia, 1985 [1968], p. 9), mas vai além desse como o próprio Basaglia alerta em seu A instituição negada. Mas a importância do movimento antipsiquiátrico é sempre citada por todos que se aventuram pelos conceitos e terapêuticas da loucura. Em Introdução a Antipsiquiatria, Chantal Bosseur afirma ‘o método de Freud e o dos antipsiquiatras têm numerosas analogias” (Bosseur, 1976 [1974], p. 94). O que Freud fez com os histéricos, os antipsiquiatras fizeram com os esquizofrênicos. O meio médico não suportava, ou mais, não procurava compreender os histéricos. A família, a comunidade e o meio médico suportam tão mal os psicóticos, e quando o suportam, não o compreendem. Os antipsiquiatras passaram a levar a sério e procurar entender sua experiência (conceito fenomenológico fundamental para se entender o trabalho dos antipsiquiatras se contrapõe ao conceito de comportamento da psicologia experimental).
Segundo Bosseur, os principais representantes da antipsiquiatria inglesa, Ronald Laing, David Cooper e Esterson se submeterama psicanálise, mas não se tornaram psicanalistas (Bosseur, 1976 [1974], p. 49). Mesmo com todas as críticas que fazim direcionadas a psicanálise, principalmente quando ligada a psicopatologia, o método de Freud os influenciou profundamente. A teoria passa por um reexame, mas não é rejeitada, por outro lado, o processo de ‘cura’ analítica, pelo caracter dialético da transferência, será sempre usado por Laing. A articulação entre Freud e Laing é feita principalmente por Malanie Klein e sua escola. A compreensão das psicoses de adultos tornava-se possível graças às descobertas feitas a partir da psicanálise de crianças.
Freud evitou ao máximo entrar na teorização sobre as psicoses, mas quando Jung (1912) questionou a aplicabilidade da teoria da libido para explicar as doenças como a esquizofrenia ele se viu “obrigado a entrar nessa última discussão, da qual gostaria de ter sido poupado” (Freud, 1914, p. 96). Em seu artigo Sobre o Narcisismo: Uma Introdução, apresenta o conceito de narcisismo para explicar o afastamento por esquizofrênicos da realidade. Um narcisismo primário e normal que seria o complemento libidinal do egoísmo devido ao instinto de autopreservação. Freud afirmava que parecia que o parafrênico (termo preferido por ele aos esquizofrêncicos) retirava sua libido de outras pessoas e coisas do mundo externo, sem substituí-las por outras nas fantasias. Em conseqüência deste desvio de seu interesse do mundo externo, eles “se tornam inacessíveis à influência da psicanálise e não podem ser curados por nossos esforços” (Freud, 1914, p. 90). Entretanto, neste artigo tão importante para o desenvolvimento da teoria freudiana ele reconhece que este afastamento ainda precisaria ser melhor caracterizado. Uma década depois, Freud escreve dois artigos, Neurose e Psicose e A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, onde aprofunda na etiologia das psicoses e neuroses e na diferenciação entre as duas.
Como comentamos acima, os antipsiquiatras contestam esse caráter patogênico. Todas as grandes figuras deste movimento tinham um histórico de questionamento político e humano:
“Todos os contestadores eram, aliás, marcados por uma trajetória que ia da luta anticolonial ao transculturalismo, passando pelo engajamento militante. Gregory Bateson era antropólogo, David Cooper era psiquiatra e havia combatido o apartheid na África do Sul, Franco Basaglia era membro do Partido Comunista Italiano. Quanto a Ronald Laing, havia se tornado psicanalista depois de ter praticado a psiquiatria na Índia, no exército britânico.” (Roudinesco (org.), 1994, p. 12)
Foucault, por outro lado, era um teórico, um filósofo, nunca havia vivido entre os loucos, mas compartilhava com os antipsiquiatras da idéia que os loucos não sofrem de uma doença mas sim, de opressão de uma sociedade que não os compreende.
“Para esses rebeldes, a loucura não era absolutamente uma doença, mas uma história: a história de uma viagem, de uma passagem ou de uma situação, das quais a esquizofrenia era a forma mais aperfeiçoada, poque traduzia em uma resposta delirante o desconforto de uma alienação social ou familiar.” (Roudinesco (org.), 1994, p. 12)
Ao longo dos anos após sua publicação, o livro de Foucault foi alvo de inúmeras críticas. Psiquiatras, psicólogos e historiadores da psicopatologia não aceitavam a idéia de verem um de seus principais objetos de estudo ser descrito não como “um fato de natureza mas de cultura” (Roudinesco (org.), 1994, p. 15). Porém, várias destas discussões apresentaram argumentos importantes ao conceito de loucura. Filósofos e historiadores apresentaram argumentos interessantes quanto a visão de Freud na obra de Foucault. No livro Foucault: leituras da história da loucura são reunidos ensaios apresentados no IX Colóquio da Sociedade de História da Psiquiatria e da Psicanálise, que teve como tema a História da loucura, trinta anos depois. Nele podemos verificar uma parte da controvérsia em torno do Cogito de Descartes, centrada principalmente na figura de Jacques Derrida e a contribuição do próprio Derrida ao colóquio, desta vez, não mais sobre o Cogito mas sobre as visões de Freud e da psicanálise na obra de Foucault.
Um nível além da discussão sobre Foucault e em conjunto com os antipsiquiatras vem a possibilidade de cura da loucura. Quando se acredita que a loucura é um sintoma de uma alteração biológica inerente a pessoa, a cura é uma impossibilidade virtual. Concordamos que uma parte das pessoas com distúrbios psíquicos realmente sofem uma alteração do Sistema Nervoso, quando esta é presente ou latente desde o nascimento. Nestes casos poderíamos até mesmo falar de cura, quando lembramos o quanto o cérebro pode ser desenvolvido e modelado pela aprendizagem. Talvez, então, não seriam tão inacessíveis assim a psicanálise e a (re)-construção psíquica de si mesmos.
Mas, tão ou mais importante que as alterações biológicas são os casos nos quais a psicose é uma reação do indivíduo a uma realidade sufocante e alienante. Nos estudos apresentados pelos antipsiquiatras verifica-se que a chamada ‘doença mental’ poderia ser muito bem compreendida como uma reação a um ambiente que poderíamos dizer mais ‘doente’ que o ‘doente mental’. Podemos perceber aqui como esta reação é perfeitamente inteligível dentro do sistema e pode atuar como a ‘cura’ de um processo anterior que poderia ser considerado patogênico. Certamente neste tipo de estudo a contribuição da psicologia sistêmica seria muito apreciada para se estudar o desenvolvimento do indivíduo e do microcosmo familiar enquanto sistemas.
Esta tese não corrobora, muito antes pelo contrário, a tese que os ‘doentes mentais’ não tem responsabilidade por seus atos. Seguindo os preceitos de Thomas Szasz, os psicóticos que infrigem a lei o fazem tendo consciência de seus atos. É a motivaçãomoral e legal que os levou a cometer um crime que deve ser julgada pela sociedade.
Nesta mesma perspectiva, da loucura como cura, não podemos deixar de comentar a abordagem deste fenômeno feita pela psicologia transpessoal. Integrando conceitos da antropologia, da tanatologia, mitologia e religião comparada, sua prática diária envolve estados mentais incomuns que a psiquiatria tradicional diagnostica e trata como distúrbios mentais.
“Quando entendidas adequadamente e tratadas de maneira compeensiva, em vez de suprimidas pelas rotinas psiquiátricas padronizadas, essas experiências podem ter um efeito de cura e produzir efeitos benéficos nas pessoas que passam por elas. Esse potencial positivo é expresso pelo termo emergência espiritual, que é um jogo de palavras, sugerindo tanto uma crise [emergência no sentido de ‘urgência’], como uma oportunidade ascensão a um novo nível de consciência [emergência como ‘elevação’]”. (Grof & Grof, 1989, p. 11)
Ao que tudo indica, o tema loucura ainda será objeto de acaloradas discussões filosóficas, políticas e técnicas. A Universidade pode e deve contribuir para maior elucidação neste campo. Um esforço conjunto da área psiquiátrica, psicanalítica e psicológica é essencial para a compreensão deste fenômeno tão presente em nossa vida, que quanto mais energia gastamos para recalcá-lo maior é a força com a qual retorna.